PhenomBlog em Português: Ser um ‘eu’ significa ser ‘único’?
Mar 25th, 2013 | By Marc Applebaum | Category: PraxisI’m happy to expand the linguistic diversity of our blog with this post of mine in Portuguese, which I offer with deep gratitude to the colleagues who volunteered to translate it:
Eu ensino uma introdução à investigação psicológica para estudantes de doutorado que dura um ano. Muitos dos meus alunos são psicoterapeutas ou estão em processo de tornarem-se licenciados, e eu freqüentemente me deparo com as duas hipóteses/suposições seguintes:
1. Nós compreendemos mais profundamente a pessoa individual quando entendemos o que faz com que a sua experiência psicológica seja única, e
2. Isto é assim porque o caráter único de uma pessoa é a própria essência de sua humanidade.
Falando a partir da fenomenologia…
Primeiro, com base na minha perspectiva como um psicólogo fenomenológico, as duas hipóteses acima negligenciam a matriz intersubjetiva dentro da qual todos os significados humanos surgem. Lau Kwok-Ying oferece uma boa discussão desses temas na obra de Merleau-Ponty. Em suma, a expressão do que nós chamamos de “individualidade” é sempre dependente de e enraizada em significados compartilhados – caso contrário, as expressões psicologicamente ricas dos indivíduos seriam incompreensíveis para os outros.
Fenomenólogos reconhecem que os significados psicológicos são vividos pessoalmente, e muitas vezes são expressados em formas únicas. O ser humano individual é valorizado, é claro. Ao mesmo tempo, a nossa humanidade não é um atributo relacional – parte e parcela de pertencer a uma comunidade de outros – ao invés de minha posse solitária? Língua, valores, esperanças, medos – todos estes são vividos em relação a um mundo de outros e no meio deste mundo. Nenhum deles são experienciados em estrito isolamento dos outros, muito menos criados ‘sui generis’ por um indivíduo isolado.
Assim, mesmo no meio de uma crise de depressão, na qual a pessoa talvez se sinta totalmente isolada dos outros e se desespere em conectar-se com qualquer um – ainda que este ainda seja um fenômeno relacional – somente o significado dos outros para o sofredor inclui um senso doloroso e isolado de inacessibilidade.
A partir desta perspectiva, quando estamos compreendendo a experiência do outro, nós estamos fazendo isso porque nós somos capazes de captar, de uma maneira fundamental, o significado intersubjetivo (compartilhado) do que está sendo vivido por essa pessoa, embora em sua própria maneira.
Em outras palavras, no caso de uma condição como a referida pelo diagnóstico “Transtorno de Estresse Pós-traumático” – PTSD, nós absolutamente queremos entender como o indivíduo está experimentando a condição, porque esta pode ser vivida de formas arrogantemente/ importantemente diferentes por pessoas diferentes.
Mas note que há um “algo”, em primeiro lugar, que está sendo vivido diferentemente – em outras palavras, nós aceitamos como verdadeiro que o diagnóstico “PTSD” é uma forma de apontar para uma constelação de fenômenos psíquicos que podem ser descritos.
Precisamente porque pode ser reconhecido e compreendido como um fenômeno à parte dos fatos empíricos específicos de cada experiência individual de estresse pós-traumático, nós somos capazes de reconhecer as maneiras nas quais o PTSD se manifesta de diferentes formas e requer diferentes respostas clínicas sutis.
Meu ponto é que se negligenciarmos o fenômeno de PTSD em si mesmo, ou tomarmos os critérios do manual de diagnóstico como de certo modo auto-evidentes, não históricos, e sem exigir reflexão adicional, então teremos efetivamente medicalizado a condição da pessoa individual: concretizado-a, objetivado-a, e tornado-a um “problema” totalmente compreendido a ser mecanicamente “tratado”. Ao invés do quê? Ao invés de investigar o significado daquilo que está sendo vivido pelo indivíduo como uma experiência intersubjetivamente significativa – não meramente uma experiência idiossincrática única / exclusiva.
Reconhecendo a dimensão intersubjetiva da experiência do outro realmente nos libera para discernir o que é particular e único na forma como isto está sendo vivido por aquele indivíduo.
Crítica à psicologia cultural
As suposições geminadas acima identificadas são, através da lente da psicologia cultural, flagrantemente limitadas pela cultura. Embora fosse ingênuo afirmar que há fronteiras absolutas entre “culturas”, mesmo assim deveria ser evidente que a valorização da individualidade é, acima de tudo, razoavelmente uma perspectiva exclusivamente “ocidental” e, talvez, em alguns aspectos, até mesmo uma perspectiva exclusivamente anglo-saxônica.
Ao invés de ver isso como um fenômeno meramente “cultural” (a palavra “cultura” soa, de certo modo, inocente e sem questionamento!), nós também poderíamos considerar que o individualismo pode igualmente encarnar uma ideologia, algo que Philip Cushman argumentou brilhantemente em seu livro Constructing the Self, Constructing America: A Cultural History of Psychotherapy. E, como Slavoj Zizek observou, uma ideologia é caracterizada precisamente pelo fato de que as suas suposições são tão onipresentes que nunca são reconhecidas como suposições. Como educadores, nós devemos isso aos nossos alunos; levantar essas questões neles.
Para demonstrar o que eu quero dizer a respeito da visão individualista ser culturalmente específica, deixe-me esboçar três ideais alternativos a respeito do ser humano essencial: Eu vou referenciar concepções da pessoa humana extraidas das tradições Judaica, Islâmica e Taoísta. Três tradições de pensamento espiritual são mencionadas a fim de indicar como outros ideais culturais colocam muito menos ênfase na importância da singularidade individual como um fim em si mesmo, ou como incorporando o valor de primazia de uma pessoa.
Uma ressalva – Eu não quero sugerir que esses ideais sejam monolíticos, unívocos, ou aceitos, ou percebidos por todos os membros das respectivas comunidades. No entanto, são os pontos de vista que moldaram significativamente as suas culturas circundantes. O que segue são miniaturas, a minha tentativa de transmitir uma noção dessas diversas visões de mundo e desses arquétipos culturais.
Mentschlekhkeyt
Na cultura judaica Ashkenazi, talvez não haja nenhuma glória/honra maior do que ser chamado de um “mensch”. Mensch, literalmente, significa simplesmente “Um ser humano”; que implica ser um ser humano genuíno, ou um ser humano real. É em certo sentido o oposto exato de ser especial ou único – de certa forma, mentschlekhkeyt (literalmente, ser um mensch, “mensch-ness”) significa que ser um ser humano real é o mais alto que qualquer pessoa pode aspirar. Quer dizer: neste contexto cultural, perceber a própria normalidade/ordinariedade absoluta é um ideal. A partir desta perspectiva, o que nos torna mais humanos é o que nos unifica com os outros, não o que nos torna singularmente diferentes e “especiais”. O Editorial de Norman Lear: “A Church for People Like Us” é uma exemplificação brilhante de mentschlekhkeyt em ação.
A sensação (percepção/compreensão) sentida de mensch, em termos psicológicos, é completamente contrária à auto-importância ou preciosidade. Em vez disso, é humilde – inevitavelmente assim! Maurice Friedman menciona a recordação de Martin Buber do conto popular judaico, que diz que o Messias tão esperado já está de fato presente na terra, esperando na forma de um mendigo que sofre de lepra (oy!) e sentado lá pelas portas de Roma, despercebido no meio do povo de rua. Em outras palavras, no conto popular, o Messias já está aqui, mas é ignorado porque ele é irreconhecível entre os membros da sociedade mais humildes, pobres e fisicamente repugnantes. Da mesma maneira, o mensch é, em certo sentido, completamente banal [que não é singular], precisamente porque ele ou ela é plenamente humano/a e sujeito às fraquezas humanas.
Al-insan al-Kamil
No Sufismo clássico, o caminho místico do Islam, a frase al-insan al-Kamil é usada para designar “o ser humano concluído”. Pode-se dizer que, no Sufismo de Ibn al Arabi (1165-1240), o ideal de inteireza / perfeição humana é representado não como o de alcançar um elevado nível, supremo e fixo, de realização espiritual, mas, em vez disso, como observa Sachiko Murata, como o de quem habita um “ponto de vista de nenhum ponto de vista”: ele ou ela é uma “pessoa de nenhuma estação [fixa]”. Ou seja, eles estão em constante mudança.
De acordo com a tradição clássica esta transparência ao divino é o resultado das aniquilações/obliterações da identidade distinta da pessoa, mudanças que são mediadas pelo relacionamento amoroso dos seres humanos com o relacionamento com Deus (tais pessoas são chamadas de “amigos de Deus“. Freqüentemente citado pelos Sufis, neste contexto, é o hadith (uma declaração atribuída ao Profeta) no qual Deus diz:
“Meu servo continua a aproximar-se de mim com obras supererogatórias para que Eu o ame. Quando Eu o amo Eu sou a sua audição com a qual ele ouve, a sua visão com a qual ele vê, a sua mão com a qual ele golpeia e o seu pé com o qual ele anda.”
A expressão paradigmática disto ocorre no verso 8:27 do Qur’an; uma descrição de uma batalha fazendo referência a um incidente no qual diz-se que o Profeta tenha atirado uma pedra que dispersara as tropas inimigas. O próprio versículo diz, em parte, “que não foi você que atirou, quando você atirou, mas foi Deus quem atirou.” Em outras palavras, a ação heróica em si mesma não pertence nem mesmo ao Profeta mais venerado no Islam.
Este tema é um longo tópico familiar na literatura Sufi clássica: quanto mais completos os seres humanos individuais são, tanto mais “vazios” eles estão em um certo aspecto, porque eles estão aniquilados / obliterados em seu Senhor. Mas, ao mesmo tempo, (e aqui está a ponte, pelo menos em algumas versões do Sufismo, com mensch) tanto mais humanos eles são. Como um ideal cultural de servidão, isto representa uma “redução” do indivíduo em face de algo maior, e é precisamente através deste serviço (as palavras árabes clássicas para servo:‘abd, e para culto:‘ ibadah, ambas vêm da mesma raiz) que o ser humano individual encontra a sua dignidade e o seu propósito. Assim, a servidão em relação ao outro, em vez da individualidade única, é mais valorizada aqui.
Shêng jên
Nos textos taoístas de Chuang-tsu (369 – 298 aC) a seguinte descrição é dada a respeito da pessoa “autêntica” ou “verdadeira” (Shêng jên), aqui traduzido como “o verdadeiro homem”:
“Qual é o verdadeiro homem? O verdadeiro homem de outrora não se opôs à minoria, não lutou por conquistas heróicas, e não maquinou/tramou nos negócios / transações. Sendo esse o caso, não se arrependeu / lamentou quando ele cometeu um erro, nem se sentiu orgulhoso quando ele estava certo… o verdadeiro homem de outrora –
Foi elevando-se em estatura, mas nunca entrou em colapso;
Parecia insuficiente, mas não aceitava nada;
Friamente independente, mas não obstinado;
Amplamente vazio, mas sem ostentação;
Agradável/divertido como se ele fosse feliz;
Contrariado como se estivesse forçado;
Expandido com um charme encantador;
Dotado de uma integridade impressionante;
Austero/inflexível, como se ele fosse mundano;
Arrogante como se ele fosse incontrolável;
Reticente/reservado, como se ele preferisse se calar/fechar;
Distraído como se ele esquecesse o que dizer…” (pp. 52-53)
A imagem da pessoa verdadeira é extraordinariamente comum (não singular) e, a partir de uma perspectiva americana, é inexpressiva (não impressionante). Este não é, obviamente, alguém interessado em “comercializar” ou “estigmatizar” a si mesmo! Pelo contrário, essa pessoa parece estar em necessidade, e ser até um pouco desagradável pelos padrões comuns!
Da mesma forma, Chuang-Tzu conta uma estória usando os personagens de Confúcio e seu discípulo Yen Hui na qual Yen Hui busca permissão para viajar para intervir junto ao governante de Wei, que está oprimindo o seu povo, a fim de melhorar a condição da comunidade de Wei.
No conto, Chuang-Tzu nega todos os argumentos que um “agente de mudança” americano poderia levantar para justificar a intervenção e, inicialmente, ao invés disso, recomenda o “jejum da mente”. Em vez de tentar resumir esta história excelente de Chuang-Tzu, eu vou simplesmente recomendá-la como uma parábola, especialmente para aqueles envolvidos em transformação social – um objetivo com o qual eu tenho grande simpatia (Eu quero dizer literalmente isto: a ‘sympathia’ grega significa uma comunidade de sentimento).
Considerações finais…
Os esboços acima não são exposições remotamente adequadas das tradições que eu referenciei – em vez disso, eles são concebidos como aperitivos cujo propósito é transmitir sabores diferentes de uma série de ideais culturais, nenhum dos quais é consistente com o individualismo estrito.
Isto não é para rejeitar o individualismo, nem é para dizer que não há nenhum individualismo nas culturas variadas que eu mencionei. Muito pelo contrário – há, sem dúvida, exemplos profundos de individualismo – ou, no mínimo, exemplos evidentes de individuação – dentro de movimentos tais como a Primavera Árabe e os movimentos pró-democracia na China. O fenômeno da individuação é a propriedade da não-cultura – embora a valorização exclusiva do individualismo seja, sem dúvida, mais pronunciado em determinados momentos e lugares.
Mas a individuação é equivalente ao “individualismo americano”? Em seu estudo de Jung e Kohut, Mario Jacoby escreve: “para Jung a questão do significado está claramente conectada com a auto-realização em si mesma através do processo de individuação. [Jung escreve:] ‘Em última análise, toda vida é a realização /compreensão de um todo… e a realização de (disso), unicamente, promove o sentido /significado da vida.’”
Enquadrar a realização como uma “realização/compreensão de um todo” de uma pessoa individual deixa a porta aberta para os múltiplos caminhos nos quais a “totalidade” pode ser experienciada, e pareceria permitir uma série de variações culturais além daquelas que podem estar mais perto de casa. Isto é particularmente importante em um tempo quando ser um “cidadão do mundo” (kosmopolitês – uma expressão que teria sido cunhada por Diógenes, o Cínico) requer que a pessoa procure compreender as motivações variadas inspirando a ação social globalmente, de Nova York ao Cairo à Moscou: nenhuma das mobilizações coletivas que estamos testemunhando são monolíticas, nenhuma delas são idênticas, e ainda como a marca do nosso tempo, elas não demandam urgentemente a nossa atenção e compreensão?
Credits
Thanks to the friends who translated this piece, who preferred to do so anonymously.
Brikis photo credit: oranges and lemons via photo pin cc
Martin Buber photo credit: On Being via photopin cc
Cupola calligraphy photo credit: beggs via photopin cc
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